Aprendemos nos estudos da linguagem que a falácia é um recurso comum na apresentação de uma ideia, uma informação ou um argumento. O termo deriva do latim “fallere”, que significa “enganar”. Portanto, falácia é uma ideia errada, uma informação falsa, um argumento equivocado, estrategicamente utilizado para dar a entender que é verdadeiro, ou seja, para enganar quem é alvo da comunicação.
Esta compreensão sobre falácias pode ser perfeitamente aplicada não apenas ao discurso mas às posturas do presidente Jair Bolsonaro, desde que tomou posse em 2019. E isto se evidencia com mais força quando o ex-capitão se comunica em espaços internacionais.
Bolsonaro discursou na ONU nesta terça, 21 de setembro. Isto se deu devido à tradição inaugurada desde a fundação da ONU, em homenagem ao Brasil, como reconhecimento a uma época em que a política externa do país tinha grande valor no mundo. Por isso, foi o segundo discurso de seu governo na ONU e, se revelou, mais uma vez, recheado de falácias. Entre as tantas referências enganosas no discurso, duas chamaram a atenção: uma foi a culpabilização do “índio” e no “caboclo”, pelos incêndios na Amazônia, livrando de responsabilidade seus apoiadores pecuaristas, madeireiros, mineradoras, grileiros e garimpeiros. A outra referência feita pelo presidente do Brasil foi a “cristofobia”, como uma das grandes questões a serem enfrentadas no mundo. Esta menção representou um forte aceno a seus apoiadores de primeira linha: católicos e evangélicos brasileiros.
O termo “cristofobia” tem sido usado por grupos religiosos conservadores como contraposição a “islamofobia”, conceito amplamente utilizado para classificar a rejeição ao Islã, muito por conta de ações de extremistas, de violência e fanatismo, que se dizem vinculados a esta religião.
Grupos cristãos sofrem perseguição, sim, seja em países em que são minoria, seja por se colocarem a favor da justiça. Da mesma forma, há perseguição a outros grupos religiosos em várias parte do mundo. O caso dos muçulmanos em Mianmar, é expressivo, assim como o dos budistas do Tibete, o das religiões tribais na Índia, o dos muçulmanos e cristãos na Palestina, entre outros.
No Brasil, se seguirmos a lógica dos fatos, o termo “cristofobia” não se aplica, por conta da predominância cristã no país. Casos de perseguição religiosa que atingem este grupo religioso são pontuais e são reflexos da ignorância e do preconceito contra evangélicos, de repressão a ações por justiça (como o que ocorre com o padre Júlio Lancelloti em São Paulo) e de situações intra-cristianismo, por exemplo, nos atentados a símbolos e templos católico-romanos por extremistas evangélicos.
Quem sofre perseguição religiosa recorrente no Brasil são as religiões de matriz africana, como mostram relatórios do governo federal, fruto de histórica demonização destas religiões por conta da hegemonia cristã exclusivista, e também do racismo estrutural, por serem expressões de fé da cultura negra.
Ao usar do argumento de “cristofobia”, Bolsonaro não só busca alimentar o apoio de grupos cristãos brasileiros ao seu governo, reforçando a retórica de combate a inimigos da fé, mas segue na trilha das pautas dos fundamentalismos político-religiosos em avanço no país e em toda a América Latina.
Apesar de serem vistos por críticos como ameaça ao Estado laico, os fundamentalismos político-religiosos não o negam. Pelo contrário, estes grupos instrumentalizam a noção de laicidade do Estado e a agenda de direitos individuais e humanos e advogam suas práticas nas bases do Estado laico e da liberdade de religião que o caracteriza. A alegação é que o Estado laico não é Estado ateu e que cristãos são cidadãos e têm direito de atuar política e socialmente conforme a sua natureza que é cristã.
Dias antes de ir à ONU, Bolsonaro publicou um vídeo no Twitter, em que participava de um momento de oração com ministros e líderes religiosos, comentado com as expressões: “O Estado é laico. Respeitamos a todos. Mas o nosso Governo é CRISTÃO”. Um discurso, alinhado com os fundamentalismos político-religiosos, que é falacioso. Bolsonaro sabe que, em um Estado laico, um governo não pode ter religião. Seus governantes, sim, mas um governo não. Governos em Estados laicos devem assumir postura laica, ou seja, têm que atuar para todas as pessoas, as que têm fé e as que não tem, para a garantia da liberdade de crer e de não crer.
Esta estratégia discursiva visa à ampliação das forças fundamentalistas anti-direitos de minorias sociais, em nome da “liberdade”. No entanto, neste caso a liberdade se daria para uma fatia social apenas e imposição de restrições para as demais. E para isso, o governo do Brasil tem buscado, até mesmo, assessoria de juristas fundamentalistas, entre católicos e evangélicos. A atuação da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) com o ministro Ernesto Araújo em pautas internacionais, é forte exemplo.
O Conselho de Direitos Humanos da ONU têm estado está atento a estes movimentos fundamentalistas político-religiosos em suas ações de restrição a direitos. O “Relatório do Relator Especial sobre Liberdade de Religião ou Credo”, de março de 2020, que trata da violência e da discriminação de gênero em nome da religião ou crença, reconhece que em vários Estados do mundo, o Brasil, inclusive, os preceitos religiosos embasam leis e práticas que constituem violações do direito, de discriminação de mulheres, meninas e LGBTI+. Afirma também que esta estratégia de reivindicação de liberdade religiosa está sendo usada para reverter e buscar isenções às leis que protegem contra a violência e a discriminação de gênero. O que muito se relaciona às posturas fundamentalistas político-religiosas do governo Bolsonaro.
O relatório oferece casos emblemáticos em que decretos religiosos discriminatórios informam leis e políticas que restringem os direitos sexuais e reprodutivos na América Latina. Isto inclui proibições parciais ou totais ao acesso ao aborto e contracepção, proibições de assistência em tecnologias reprodutivas e cirurgia de redesignação de gênero e limites à provisão de educação em sexualidade baseada em evidências, entre outras.
A intervenção do MInistério da Mulher, Família e Direitos Humanos, liderado pela pastora Damares Alves, no caso da menina do Espírito Santo, que engravidou aos 10 anos por estupro, e foi autorizada pela Justiça a interromper a gestação, é mais um forte exemplo, entre muitos. O Ministério agiu para impedir a plena realização do direito da criança, incluindo a suspeita de vazamento das informações que atiçou fiéis a protestarem em frente ao hospital.
O Relatório da ONU cita o Brasil também entre os países que restringiram programas de educação em saúde sexual e reprodutiva, após pressão de grupos religiosos. Ele também expressa profunda preocupação com o aumento das campanhas políticas e religiosas que reivindicam a liberdade religiosa para provocar o retrocesso dos direitos humanos, econômicos, culturais, sexuais e ambientais e fazer proselitismo desrespeitando a fé alheia.
Cristofobia existe mas não isoladamente pois não é um mal social exclusivo quando o tema é religião no mundo. Quem fala de cristofobia, advogando liberdade, precisa fazer o mesmo em relação à fé de matriz afro, islâmica, budista, sikh, hindu, espiritualista, entre tantas múltiplas outras, e à liberdade de não se ter uma fé.
O que existe no mundo é a intolerância religiosa, um sentimento nocivo que acompanha o ser humano em toda a sua trajetória de existência, e se concretiza no preconceito, na segregação, no fanatismo e no autoritarismo teocrático. Ela atinge grupos que cultivam, de modo diversa, a sua fé em Deus, impedindo que pessoas vivam a plenitude da vida, por meio da imposição de uma única forma religiosa, tida como verdadeira, negando a pluralidade. É isto que têm que ser enfrentado, nas mais variadas formas de expressão.
O que passar disto é falácia e é do Maligno.
Foto de capa: Humor político